FÉ E RELIGIÃO NA VIDA DE NELSON MANDELA

The Spiritual Mandela apresenta-nos o grande líder
sul-africano numa perspetiva singular, e por ele
raramente abordada: a importância da influência
cristã na sua formação. O Bispo Desmond Tutu disse uma
vez que Mandela era “muito, muito privado” a respeito
da sua vida espiritual, mas este livro mostra-lhe uma
narrativa repleta de evidências que contribuíram para
o desenvolvimento intelectual e espiritual desta figura
ímpar da História Moderna.

Ao invés do ativismo pela liberdade que sempre pautou cada momento da sua vida, Nelson Rolihlahla Mandela foi muito reservado na exposição pública das suas convicções religiosas. Não obstante, alguns anos antes da sua morte em 2013, Mandela determinou que o seu funeral observasse os rituais metodistas tradicionais, numa cerimónia dirigida pelo Bispo Metodista Don Dabula, seu amigo e confidente.
Embora no seio de uma família fiel à tradição tribal, o seu desenvolvimento confunde-se com os valores cristãos. Por orientação do pai foi batizado na Igreja Metodista, tendo posteriormente sido formado por missionários britânicos, acabando mesmo por creditar as instituições metodistas como ideais para criar o tipo de mentes independentes que lideraram a luta anti-apartheid.
Após a morte do pai, o pequeno Rolihlahla é entregue ao chefe tribal, Jongintaba, que vivia na capital da província de Thembuland, que se tinha oferecido para ser guardião da sua formação, algo que Gadla, o pai, não podia rejeitar. Significava uma grande oportunidade de garantir um futuro promissor para o jovem Mandela, estudando e crescendo num ambiente cristão, mantendo uma educação dentro das tradições da tribo Thembu,  supervisionado por um dos seus maiores líderes.
A viver agora no palácio, o Great Place, Mandela tinha um tutor que assumiu a sua  responsabilidade em pleno, estabelecendo um plano que asseguraria atingir o seu máximo potencial, cujo destino seria o de um conselheiro real, e não passar a vida no  fundo das minas de ouro sul-africanas. Não havia melhor local, nem ninguém mais capacitado do que Jongintaba, que conhecia muito sobre os dois pilares que governariam a formação de Mandela ali – cultura e religião. A sua função exigiria qualidades excecionais, integrando os valores tradicionais da tribo Thembu mantendo, como Metodista, os princípios da fé cristã.
A família era fiel ao costume ancestral, desde a presença do missionário William Shaw, no início do séc. XIX, de presenciar o culto dominical, o que levou Mandela a um novo hábito e uma nova autoridade, o poder do Cristianismo transmitido pelo Reverendo Matyolo, líder da Igreja Metodista local. Em 1934, aos 16 anos, Rolihlahla participou no ritual tradicional Xhosa de circuncisão, que significa a entrada dos rapazes na idade adulta, algo fundamental para quem se quer respeitado entre os Thembu. Sem a passagem por este  cerimonial nenhum homem Xhosa pode herdar dos pais, casar ou oficiar ritos tribais. Mandela era agora Dalibunga, designação atribuída a um governante tradicional na região do Transkei.
Quando Mandela entrou na escola secundária, o regedor confiou a sua instrução ao Reverendo Harris, do Instituto Metodista de Clarkebury, a quem chamavam de “Thembu branco”. Curiosamente, a estação missionária de Clarkebury foi edificada em terras oferecidas pelo bisavô de Mandela, o Rei Ngubengcuka, ao missionário William Shaw. A sua fundação, em 1825, esteve a cargo do Rev. Richard Hadley, assim batizada em honra do teólogo britânico Dr. Adam Clarke.

“… Não tenho problema com crença religiosa. O meu problema é que demasiadas vezes as pessoas falham em agir de acordo com aquilo em que acreditam.”

O regente Jongintaba, ele próprio formado em Clarkebury, estava  determinado em facultar ao jovem Mandela condições propícias à sua preparação para o importante papel que iria desempenhar na sociedade Thembu. O mix da sua formação cristã e  tradicional seria fulcral para guiar o futuro rei.
Depois de três anos em Clarkebury, Mandela foi transferido para outra prestigiada  instituição metodista, o Wesleyan College de Healdtown, com mais de quatro mil alunos de ambos os sexos, onde prevalecia o sistema de ensino britânico, cristão e dedicado a artes liberais.
Apesar de ser considerada uma escola da elite sul-africana, que formava negros  anglicizados, deu oportunidade a Mandela de experimentar a oposição pacífica à supremacia branca vigente, germinando aí o seu futuro entendimento perante o regime de apartheid.
Em 1939, então com 21 anos, Nelson Mandela entrou numa Universidade conhecida pelos elevados padrões cristãos, estando ligada às igrejas Anglicana, Metodista e Presbiteriana
– a Universidade de Fort Hare. Ali foi um ativo membro da associação de estudantes cristãos, e deu aulas de Bíblia em lugarejos dos arredores. Para se ter uma ideia da formação que ali era transmitida, e do tipo de mentes ali cultivadas, atente-se na
quantidade de outros ativistas pela liberdade que fazem parte da sua lista de alumni, incluindo Oliver Tambo, Robert Mugabe, Seretse Khama, Dennis Brutus, Govan Mbeki e Robert Sobukwe.
Já no final dos seus dias, Mandela expressou a sua gratidão para com os missionários  europeus. “A nossa geração é fruto do labor dos missionários que orientaram a educação de negros em escolas cristãs, quando o governo negligenciou essa obrigação. Por isso, o Cristianismo está no nosso sangue.”
Duas figuras destacadas da luta anti-apartheid, Nelson Mandela e Oliver Tambo tornaram-se grandes amigos naquela escola, o que demonstra como as escolas e universidades cristãs contribuíram para o desenvolvimento do pensamento livre e revolucionário, num período da história sul-africana em que muitos negros lutavam para conseguir uma educação decente.
No entanto, a sua vida mudaria radical e abruptamente, pois o regente já numa fase decadente determinou que Mandela se casasse com uma mulher por quem não tinha qualquer sentimento. Senhor de uma mentalidade forte e evoluída, optou por não se submeter à ordem do seu tutor, abandonando a universidade e fugindo para Joanesburgo, abdicando assim do futuro que lhe estava destinado, mas preservando a sua independência.
Apesar de ter vivido protegido com a família do regente, e de obter uma formação  académica exemplar, nunca deixou de considerar a importância que a sua mãe teve na sua vida, e sentia-se profundamente grato pelo papel que ela desempenhou na formação da sua identidade religiosa.

Dennis Cruywagen – IMAGINE BOOKS-WATERTOWN


POR PAULO SÉRGIO GOMES