TEXTO E DESENHOS POR JOÃO TERESO, EM INGLATERRA
“Conheci muito pouco de Inglaterra; no comboio fui observando os pequenos prédios em tijolo que iam aparecendo atrás da fronteira de árvores que separava a linha de comboio das cidades rurais, à saída de Gatwick. Cheguei num dia histórico, pois foi nessa manhã, durante o voo, que a Inglaterra soube que iria sair da União Europeia, um dia que o piloto do avião apelidou como estranho, antes de comunicar a aterragem. Ainda que a viagem tenha sido curta, deu para apreciar as idiossincrasias dos britânicos, o seu humor característico, e observar o design pitoresco das estações com toda a sua sinalética a mostrar as cores da bandeira.
O objetivo da minha viagem era apenas conhecer melhor a comunidade L’Abri da Inglaterra, fundada 50 anos antes por Francis Schaeffer, e sobre a qual eu sabia muito pouco na altura mas que tinha muita curiosidade em conhecer de perto.
A L’Abri (francês para “o abrigo”), foi fundada com o intuito de receber “students” de todos os lugares que queiram colocar questões sobre a vida, sobre Deus e sobre eles próprios, sejam cristãos ou de outra religião. Existe a ideia de que está intimamente ligada a questões intelectuais, mas isso não é verdade; apesar de estar equipada com uma excelente biblioteca e com milhares de palestras em áudio, o objetivo principal passa antes por receber as pessoas no seio da própria comunidade, para que todos percebam que a verdade do Cristianismo tem uma influência transformadora na nossa vida quotidiana. Se precisasse de resumir a minha estadia em L’abri, resumiria-a à palavra surpresa, que é, na minha opinião, uma das principais bênçãos da vida cristã, o espanto contínuo com a forma como Deus cuida de todas as coisas, em todo o tempo, e que tão bem se fazia sentir na forma como a vida na L’Abri é orientada.
Lidar com as diferenças culturais veio a revelar-se algo difícil no início. Estive lá ao mesmo tempo que 30 e poucos outros “students” (que não são obrigatoriamente estudantes universitários, apenas se chama students aos convidados de fora), vindos de todo o mundo, alguns para ficar até ao final do “term”, outros por um mês, outros por apenas alguns dias. Assim que cheguei, foi-me associado um tutor, o Peter, com quem me dei muito bem dado a disponibilidade enorme de coração dele e o seu interesse genuíno em conhecer os outros. Comecei a conhecer as pessoas à medida que se apresentavam a mim e me explicavam como funcionava a vida na L’Abri, como eram orientados os dias, de onde vinham e o que pretendiam estudar enquanto ali estivessem. Uma das students descreveu bem a situação de quase todos, dizendo que se um jovem estava lá era porque estava numa fase de transição pessoal e procurava algum tipo de resposta para o que ia fazer a seguir. Antes de ir eu imaginava tudo muito mais snob, com a biblioteca cheia de estudantes de seminários alemães a ler Karl Barth e a discutir a trindade às refeições. Mas as preocupações da minha geração já não são as mesmas do tempo do Francis Schaeffer e tendem a ser mais relacionais e acerca do indivíduo.
O dia era dividido em duas partes, uma para trabalho prático na propriedade e outra para estudo individual. Ajudávamos a preparar as refeições, a limpar a Manor House (mansão central onde estão alojados os students e onde são as refeições em conjunto), a tratar do que fosse preciso tratar na propriedade. Tudo era feito com a ajuda de um ou dois “helpers”, pessoas que normalmente já tinham sido students e tinham ficado para ajudar nas tarefas práticas durante um ou dois term (sensivelmente três meses). E foi sempre neste ambiente de entre-ajuda que as atividades eram levadas a cabo, para que nenhuma característica da vida em comunidade fosse ocultada e ficássemos como uma ideia errada do que implica viver em conjunto com outras pessoas, em comunidade.
O almoço é inteiramente dedicado a responder a uma pergunta colocada por um student, logo no início da refeição. Depois da pessoa colocar a questão, o “worker”, uma das as pessoas que trabalham a tempo inteiro na comunidade e que recebem as pessoas nas suas casas, espalhadas pela propriedade, para além de darem mentoria uma vez por semana, entre outras coisas, tentava esclarecer a questão colocada para que todos tivéssemos no mesmo barco e a discussão fosse dessa forma mais intencional. Esta foi uma das coisas que mais gostei enquanto estive lá: poder conversar sobre tudo com as pessoas e aprender com cada uma delas.
Conversei sobre os filmes do Malick, sobre as políticas de gun control nos EUA, sobre música, cultura, arte, catolicismo, poesia, guerra, e muitos outros temas. Conversava a arrancar ervas daninhas, a preparar as refeições, a limpar casas de banho ou no intervalo do chá. Havia sempre alguém disposto a ouvir e a pensar seriamente sobre os assuntos, com profundidade. Isto ajudou-me a refletir sobre a minha própria fé, ao conhecer pessoas que passam exactamente pelo mesmo que eu e que também procuram respostas para problemas idênticos aos meus, principalmente no que toca a ligar os estudos à nossa fé, a ter uma mente renovada dia após dia.
A vida em comunidade ensina-nos que não somos, de todo, a coisa mais importante da nossa vida, não devemos pôr a confiança nas nossas capacidades nem atentar em primeiro lugar para as nossas necessidades. Fazer a ponte entre uma comunidade inteiramente dependente de Deus, algures num campo no sul de Inglaterra, e a confusão da nossa vida diária, é que é um desafio, mas um bom desafio, pois procura a glória de Deus acima de todas as outras coisas.
Quando me comecei a aperceber de como as coisas funcionavam, descrevi aquela comunidade em duas sentenças: isto é uma casa de ricos gerida por gente pobre, e aqui, apesar de tudo funcionar sob o controlo de duas mil regras, ninguém parece apercebe-se disso e tudo corre, literalmente, na paz do Senhor.
O pequeno almoço era às 8:30, não era às 8:35, mas nunca havia problema pois todos queriam estar lá a horas. A vida era agitada, mas a inexistência de ansiedade nas pessoas permitia ter momentos significativos ao longo do dia, seja no salão principal a ouvir alguém cantar ao piano, seja no intervalo do chá a jogar à bola. Limpei mais casas de banho e lavei mais loiça do que nos seis meses anteriores, mas nada me custou. E tudo isto se passava numa mansão do estilo arts and crafts, o que para um estudante de arquitetura é uma experiência única.
Durante a parte do dia dedicada ao estudo eu aproveitei para responder a uma lista de perguntas que levei para colocar a mim mesmo e, antes de ir, tinha a intenção de não estudar mais nada durante aquela semana para não me distrair do meu foco. Aproveitei para pensar, escrever, refletir e orar, para que pudesse tirar o máximo proveito do meu tempo devocional e da calma de espírito que o campo inevitavelmente oferece. Bem, acabei por ler algumas coisas e ouvir duas ou três das palestras guardadas de anos e anos de encontros semanais, mas que me ajudaram muito no que eu me propus fazer naqueles dez dias. Depois do jantar ou tínhamos uma palestra dada por um convidado, ou passávamos o serão juntos a jogar, a ouvir um podcast, a ver um filme (que, à semelhança de quase tudo o que se faz naquela casa, era acompanhado de uma discussão no final), ou simplesmente na conversa ou a ver os jogos de portugal no pub. Isto foi o que mais apreciei: conversar sobe quase tudo, perceber as idiossincrasias das pessoas, os seus testemunhos, os seus gostos e hábitos. Ouvir a forma como cada um vê as coisas de forma diferente e perceber a sua atitude em relação ao mundo. Aprender com pessoas realmente sábias, mas completamente humildes.
Não pretendo falar de casos específicos pois seria muito mais proveitosos explicar tudo pessoalmente a quem quer saber mais sobre o que é a L’Abri; apenas quero dar a mostrar esta bonita comunidade e o enorme impacto que estas pessoas tiveram na minha caminhada com Cristo, para que possa, assim, entusiasmar mais pessoas a aprofundarem o seu chamado.”
J. I. PACKER sobre SCHAEFFER:
“Tenho a certeza de que não estarei errado ao saudar Francis Schaeffer (…) como um dos verdadeiros grandes cristãos do meu tempo.”