POR DANIEL GOMES
Poucas obras contêm capítulos tão ricos e impactantes
que se destacam do resto do livro, mas isto
é precisamente o que acontece com a história d’O
Grande Inquisidor, da obra Os Irmãos Karamazov, a última
de Fiódor Dostoiévsky. Num conto chocante e desinibido,
Dostoiévsky examina uma das questões mais desconcertantes
de sempre: “E se Cristo viesse de novo à Terra?”
O último livro do famoso autor russo Fiódor Dostoiévsky, Os Irmãos Karamazov, fascinou e influenciou algumas das maiores mentes da história moderna, desde Einstein a Freud e a Camus. O seu enredo complexo em volta da reunião de uma família disfuncional e as peripécias que daí advêm, assim como os temas filosóficos presentes na história, continuam a deslumbrar os leitores até hoje. Existe porém um certo capítulo neste livro – ou melhor, parte de um capítulo – que ganhou popularidade mais que suficiente para se destacar dos demais. Esta é o conto d’O Grande Inquisidor.
A história surge enquanto dois dos protagonistas do livro, os irmãos Alyosha e Ivan Karamazov, conhecem-se melhor num jantar, depois de muitos anos sem se verem. Ivan, um niilista, confronta Alyosha, um cristão devoto e iniciado no mosteiro local, com o facto de este último querer saber se Ivan crê ou não em Deus. Ivan explica a sua dificuldade em lidar com o problema do mal e do sofrimento no mundo, concluindo que ele não se pode juntar a uma entidade divina que deixa a sua criação sofrer tanta dor e injustiça. Alyosha relembra o seu irmão do sacrifício de Cristo, que de forma dolorosa e injusta morreu pelos pecados do Homem. Ivan não se surpreende com esta resposta, e apresenta o seu “poema” em defesa do seu ponto de visto.
Ivan começa com Cristo voltando à terra em forma humana durante os tempos da Inquisição, eventualmente chegando a Sevilha. Os habitantes reconhecem Jesus à medida que Ele se aproxima da catedral. Ele começa a realizar milagres tal como fez nos Evangelhos, incluindo a ressurreição dos mortos; o Grande Inquisidor testemunha estes feitos e, em vez de reconhecer abertamente que Cristo
é Senhor, ele manda os seus guardas prenderem-No.
Nessa mesma noite, o Grande Inquisidor aparece ao Cristo encarcerado. O que se segue é um sermão longo e brutal por parte do Inquisidor sobre o fracasso de Cristo em fazer o Homem feliz ao dar-lhe
liberdade – um fracasso que o Inquisidor crê ter sido corrigido pela Igreja através do trabalho da Inquisição.
O velho Inquisidor explica como as tentações do Diabo no deserto foram de facto oportunidades para Jesus estabelecer o Seu Reino na terra, assim como, ao dar justificação e liberdade pela fé, Cristo impôs ao Homem um fardo pesado demais. O Inquisidor também afirma que ele e outros como ele se empenharam em guiar os “milhares de milhões” à felicidade terrena, mesmo que tal leve à morte e destruição eternas, e que ele não iria permitir que o próprio Cristo interferisse com o seu trabalho. Jesus mantém-se em silêncio durante todo este monólogo; a sua única resposta ao Inquisidor é um beijo que apanha o ancião desprevenido. O Inquisidor liberta Jesus, dizendo-Lhe para nunca mais voltar.
Apesar da sua conclusão dúbia, O Grande Inquisidor continua a ser um dos mais enfáticos e relevantes
excertos da obra de Dostoiévsky. Ele obriga os leitores a imaginar uma versão peculiar da segunda vinda de Cristo, a entrar na mente deste velho clérigo e a considerar a sua lógica com a devida dedicação. Abraçando temas como o livre-arbítrio, a natureza pecadora do homem e o sofrimento, este “poema” é celebrado por leitores religiosos e seculares até hoje. O seu charme incisivo e as suas deliberações marcantes fazem desta história uma parte essencial da nossa décima edição, dedicada em
especial a obras históricas.