Há uma coisa que se torna evidente para muitos quando se começa a ler Le Morte
d’Arthur: ela não flui. As frases não parecem fluir quando a grande maioria começa
com «Então…», «Depois…», «E…», ou uma combinação destas palavras. Às vezes parece
que Malory está mais focado em apontar factos do que em contar uma história. Todos
estes são bons pontos, e o excerto seguinte será certamente prova disso:

«Em dois anos o Rei Uther ficou acamado por uma grande enfermidade. E
entretanto os seus inimigos conspiravam contra ele, e combateram ferozmente
os seus homens, e mataram muitos deles. ‘Senhor’, disse Merlin, ‘vós não podeis
descansar como fazeis agora, pois tendes de ir para o campo (de batalha) ainda
que numa liteira: pois nunca derrotareis os vossos inimigos a não ser que estejais
lá, e então tereis a vitória.’ Então foi feito como Merlin planeou, e eles trouxeram
o rei numa liteira com um grande exército até aos seus inimigos. E em St. Albans
um grande exército vindo do Norte se encontrou com o rei. E naquele dia
Sir Ulfius e Sir Brastias realizaram grandes proezas, e os homens do Rei Uther
derrotaram as forças do Norte e mataram muita gente, e puseram o resto em
fuga. E então o rei voltou a Londres, e houve muita alegria pela sua vitória. E
depois ele adoeceu gravemente, de tal forma que ele não disse nada durante três
dias e três noites…» (tradução livre)

Porém o leitor contemporâneo pode ultrapassar essas desvantagens com um pouco
de imaginação da sua parte. Vejamos primeiro como Malory constrói as frases. Ele
repete muitas das mesmas conjugações para dar um aspeto de continuidade, e
isto pode ser tido contra ele – mas eu não o faria, especialmente quando podemos
dar a volta a isso. Algo que funcionou para mim foi imaginar o próprio narrador a a
contar a história, como um avô conta histórias aos seus netos, ou como amigos numa
taberna contam histórias uns aos outros (esta última terá certamente um aspeto mais
medieval). Com isto em mente, leia o excerto novamente e confira se funciona para si!

ARTIGO PRINCIPAL: LE MORTE D’ARTHUR, por Sir Thomas Malory

Quanto à ideia de que Malory está a “apontar factos”, ela faz realmente sentido. Mas
talvez era mesmo essa a ideia de Malory: fazer com que estes mitos parecessem
história exata. Se aplicarmos o conceito do narrador que acabei de sugerir com a ideia
de que estes contos devem ser reais, a experiência torna-se ainda mais rica. Já não
estamos a ler um relato atabalhoado de lendas e mitos. Estamos sim a conhecer um
relato incrível de eventos históricos passados na Grã-Bretanha, como se Malory – ou
quem a gente quiser, se é que importa – estivesse sentado ao nosso lado, contando-nos
como o rei foi para a batalha mesmo estando doente e estendido numa liteira!
Vê a diferença?

Os anos não têm sido bondosos para com Le Morte d’Arthur, mas a obra continua
própria para consumo – desde que o leitor saiba como a deve ingerir.