ANTEVISÃO – PRIMEIRO CAPÍTULO
PARECIA ENCONTRAR-ME NUMA FILA para apanhar
o autocarro, que se estendia ao longo de uma rua sem beleza. A
tarde caía e chovia. Durante horas vagueei por ruas igualmente sem
beleza, sempre debaixo de chuva e sempre ao crepúsculo.
O tempo parecia ter parado nesse momento sombrio quando
apenas algumas lojas tinham acendido as luzes, não estando ainda
suficientemente escuro para as suas montras revelarem o seu encanto.
E tal como a tarde nunca mais se tornava em noite, assim a
minha caminhada não me levava aos melhores bairros da cidade.
Por mais que caminhasse apenas encontrava pensões decrépitas,
pequenas tabacarias, tapumes de onde pendiam cartazes rasgados,
armazéns sem janelas, boas estações sem comboios e livrarias do
tipo das que vendem As Obras de Aristóteles.
Nunca me cruzei com ninguém. Mas para a pequena multidão
à espera do autocarro, toda a cidade parecia deserta. Penso que foi
por essa razão que decidi juntar-me à fila. Fui de imediato bafejado
pela sorte porque, mal ocupei o meu lugar, uma mulherzinha irritada
que estava à minha frente come çou a discutir com um homem
que parecia ser seu acompanhante:
— Muito bem. Não vou! — E saiu da fila.
— Nem penses que me importo minimamente de ir — respondeu
o homem, em tom muito educado. — Só estava a tentar agradar-
te, para manter a paz. Mas o que sinto não tem importância.
Percebo isso muito bem — e, juntando os atos às palavras, também
se afastou.
“Vá lá,” pensei com os meus botões, “são menos dois à minha
frente”.
Estava agora próximo de um homem baixinho, com ar carrancudo,
que me olhou de relance com uma expressão de profundo
desagrado e comentou, num tom de voz desnecessariamente
elevado, para o homem à sua frente:
— Este é o tipo de coisas que nos faz pensar duas vezes se vale
mesmo a pena ir.
— Que tipo de coisas? — Resmungou o outro, um homem
corpulento.
— Bem, a verdade é que este não é o tipo de gente a que estou
habituado — disse o Baixinho.
— Ei! — Retorquiu o Grandalhão e acrescentou de seguida,
olhando para mim. — Não lhe dê confiança, amigo. Não está com
medo dele, pois não?
Depois, vendo que eu não esboçava qualquer gesto, virou-se de
repente para o Baixinho:
— Já vi que para si não prestamos para nada, pois não? Não
seja maldizente!
De seguida, atingiu o Baixinho com um murro no rosto, fazendo-
o cair na sarjeta.
— Deixem-no estar aí, deixem-no estar — disse o Grandalhão
para ninguém em particular. — Não passo de um homem simples
e tenho os meus direitos como qualquer outro, não?
Como o Baixinho não mostrava nenhum interesse em reocupar
o seu lugar na fila, começando a afastar-se a coxear, aproximei-me
cautelosamente e fiquei atrás do Grandalhão, satisfeito comigo
próprio por ter avançado mais um lugar.
Momentos depois, dois jovens que estavam à frente dele também
se foram embora, de braço dado. Ambos usavam calças, eram
elegantes, riam e falavam em falsete. Não tive a certeza do sexo
de cada um deles, mas era evidente que naquela altura ambos
preferiam a companhia um do outro à oportunidade de um lugar
no autocarro.
— Não vamos caber todos — lamentou uma voz feminina, cerca
de quatro lugares à minha frente.
— Troque de lugar comigo, por cinco moedas, minha senhora
— propôs-lhe alguém.
Ouvi o tilintar do dinheiro e depois um grito feminino que se
misturava com o clamor das gargalhadas da multidão. A mulher enganada
saltou do seu lugar e correu atrás do homem que a intrujou,
mas os outros imediatamente cerraram fileiras e expulsaram-na…
Assim, incidente após incidente, a fila ficou reduzida a proporções
aceitáveis, antes de o autocarro chegar.
Era um veículo maravilhoso, todo iluminado com luzes douradas,
heraldicamente colorido. O próprio Motorista parecia cheio
de luz e usava apenas uma mão para conduzir. Agitava a outra
mão junto ao rosto, como se quisesse afastar o vapor gorduroso da
chuva. Ouviu-se um resmungo na fila quando ele chegou:
— Parece que andou a divertir-se, não acham?… Aposto que a
vida lhe corre bem… Porque é que ele não se comporta de forma
natural?… Considera-se demasiado bom para olhar para nós…
Quem é que ele julga que é?… Tanto brilho e espalhafato, que
desperdício. Porque é que não gastam o dinheiro na sua própria
casa?… Francamente! Que vontade de lhe dar nas orelhas!
Confesso que não conseguia ver nada no aspeto do Motorista
que justificasse todas estas críticas, a não ser o seu ar autoritário e
a aparente vontade de fazer o seu trabalho.
Os meus companheiros de viagem engalfinharam-se para entrar
no autocarro, embora houvesse lugares suficientes para todos. Fui
o último a entrar. O autocarro tinha metade da lotação preenchida.
Escolhi um lugar na retaguarda, bem longe dos outros passageiros.
Mas um jovem desgrenhado veio sentar-se mesmo ao meu lado.
Assim que se acomodou, partimos.
— Pensei que não se importaria que me sentasse aqui, pois
reparei que tem a mesma impressão que eu a respeito desta gente
— disse o jovem. — Não percebo por que carga de água insistem em
vir. Não vão gostar nada quando chegarmos ao destino. Estariam
muito mais confortáveis em casa. Mas para nós, é diferente.
— Eles gostam deste lugar? — Perguntei.
— Como gostariam de qualquer outra coisa — respondeu.
— Há cinemas, lojas de comércio local, anúncios e tudo o que
quiserem. A espantosa falta de todo o tipo de vida intelectual não
os preocupa. Assim que cheguei, percebi que havia algo errado.
Devia ter apanhado o primeiro autocarro, mas perdi tempo a tentar
despertar as pessoas daqui. Encontrei alguns amigos que já conhecia
e procurei formar um pequeno círculo, mas todos eles pareciam
ter descido ao nível do ambiente que os rodeia. Antesmesmo daqui
chegar tive algumas dúvidas a respeito de um homem como Cyril
Blellow.1 Sempre achei que era alguém com segundas intenções.
Mas pelo menos era inteligente. Podíamos ouvir algumas das suas
críticas valiosas, embora fosse um fracasso no que diz respeito a
criatividade. Agora parece que não lhe restou nada, a não ser a
sua presunção… mas espere um pouco, importa-se de ver por si
próprio?
Percebendo, com um arrepio, que ele retirava do bolso um
volumoso maço de papel dactilografado, murmurei uma desculpa,
dizendo que não tinha trazido os óculos e exclamei:
— Olhe! Levantámos voo!
Era verdade. Algumas centenas de metros abaixo de nós, já
meio escondidos na chuva e no nevoeiro, viam-se os telhados
molhados da cidade, espalhando-se sem interrupção, até perder
de vista.