Utopia, o clássico de literatura que imortalizou o nome do seu
autor e deu forma a todo um subgénero de ficção, encontra-se agora
totalmente disponível e gratuito em theopenutopia.org, um website
dedicado a honrar o legado da obra prima de Thomas More.
“O orgulho presume que a sua felicidade brilha de forma mais radiante ao compará-la com os infortúnios das outras pessoas.” (tradução livre)
Sir Thomas More foi um homem excepcional no seu tempo: ele gozou de uma carreira bem-sucedida como advogado e estadista, que culminou na sua nomeação para a posição de Lord High Chancellor da Inglaterra, em 1529. Ele foi também um filósofo católico e humanista renascentista que se relacionava com algumas das mais brilhantes mentes do seu tempo, incluindo o seu colega humanista Erasmo de Roterdão. Além disso, a fé de More na doutrina católica levou-o a combater a Reforma Inglesa e, por
conseguinte, a rejeitar a supremacia do rei inglês sobre a igreja – um ato de alta traição que levou à sua execução assim como à sua canonização, uma vez que a Igreja Católica venera o Santo Thomas More como um mártir que morreu em defesa da união da Igreja.
Porém nenhum destes feitos pode igualar a sua sátira inovadora, Utopia. Publicada pela primeira vez em 1516, a obra de ficção tem vindo a formar os alicerces da literatura utópica e distópica e a inspirar ideologias políticas e económicas como o socialismo e o comunismo.
Baseado em grande parte na República de Platão e nos ideais humanistas emergentes no tempo de More, Utopia retrata uma nação e sociedade idílicas que todas as outras nações devem imitar, e o seu conteúdo permanece um foco de muita discussão, quinhentos anos depois da sua publicação.
Utopia foi escrita como a transcrição de uma conversa entre Thomas More, o seu amigo Peter Gilles (Pieter Gillis), e uma personagem fictícia, Raphael Hythloday (Hythlodaeus).
É esta última personagem, descrita como um explorador e filósofo português que viajou com Américo Vespucci, que consome a maioria do diálogo no livro: Hythloday é quem fala a More e ao seu amigo acerca da Utopia, a ilha sublime onde ele afirma ter passado cinco anos na companhia generosa dos seus habitantes.
Ele descreve Utopia com um detalhe rigorosíssimo, desde a sua geografia e economia às mais ínfimas particularidades da sua sociedade e religião. Ao longo da sua história, Hythloday oferece-nos uma imagem extremamente positiva da nacão insular, elogiando a ênfase dos Utopianos no bem comum e no domínio público acima da propriedade privada, assim como o compromisso daquele povo para com a aprendizagem e as virtudes da Natureza.
Embora intrigado por alguns dos aspetos da política e cultura Utópicas, Hythloday apercebe-se de que existe muita sabedoria por detrás desses mesmos aspetos. Por exemplo, Hythloday não compreendia porque é que a nação contratava um número excessivo de mercenários, visto que isto seria considerado algo estranho e ineficaz nas guerras do Velho Mundo.
Contudo, a decisão dos Utopianos passou a fazer todo o sentido assim que lhe contaram que eles não tinham necessidade de ouro nem prata – as duas coisas pelas quais os mercenários matam e morrem – ainda que possuíssem ambas em abundância, e como eles preferiam pagar bem aos mercenários em vez de sacrificar o próprio povo nas linhas da frente; sem contar com o facto de, ao fazerem isto, os Utopianos garantiam que os seus inimigos não podiam fazer o mesmo.
Um conhecimento mais profundo de como os Utopianos viam o derramar de sangue em geral ajuda Hythloday (e por sua vez, o leitor) a perceber que este era de facto a melhor forma de prosseguir para o povo Utopiano.
São estes modos sábios de Utopia que muitas vezes levam Hythloday a contrastar a nação insular, que ele considera como “a única república que realmente merece ter essa designação,” com os reinos insignificantes da Europa e as suas leis opressivas, a sua cultura bélica e a sua natureza orgulhosa. Ele conclui que estes reinos podem aprender muito com o exemplo de Utopia, mas também que não é a ele que cabe transformá-los.
O papel que More desempenha nesta conversa dominada por Hythloday é a de um mero espectador com uma etiqueta exemplar; até na sua conclusão à conversa fictícia, More manteve-se bastante reservado em relação ao seu veredicto, declarando de forma vaga que gostaria de ver mais de Utopia em Inglaterra apesar de não estar de acordo com algumas das suas políticas e tradições. Isto, porém, não é surpresa nenhuma: More era um Católico e contra-reformador obstinado e como tal, ele provavelmente não iria aceitar o princípio Utópico de sacerdotisas, ou o ponto de vista daquela nação em relação ao divórcio.
O que é bem capaz de surpreender, no entanto, é que, sendo More o católico devoto que era, visionava estas coisas como parte de uma república genuína e perfeita. A interpretação de Utopia é de facto algo complicada, uma vez que a sátira é tão complexa e credível, e ao mesmo tempo tão indicativa do absurdo, que o seu significado e propósito exatos tornam-se inescrutáveis.
Se More estava a ser algo cínico com a sua obra é no entanto irrelevante; Utopia e os seus conceitos têm sido cruciais na formação do espectro político mundial e realçam os princípios do bem comum e da responsabilidade cívica. Ainda que Thomas More possa nunca ter tido a expectativa de ver uma Utopia terrena durante a sua vida, a realidade continua a querer imitar a ficção; assim, é a nós que cabe honrar o legado de More e a procurar materializar aquilo que apenas parecia ser um sonho esperançoso no séc. XVI – e isso começa com o ler esta obra magnífica.