UMA ANÁLISE DO LIVRO DE ECLESIASTES E DAS MEDITAÇÕES DE MARCO AURÉLIO
Quando pensamos em sabedoria, pensamos em pessoas cujas palavras transbordam de conhecimento útil para as nossas vidas. Filósofos, escritores, pastores, gurus – pensamos em pensadores, em pessoas que buscam (e por vezes encontram) entendimento sobre questões que normalmente deixam o ser humano pasmado.
POR DANIEL T. GOMES
ESTAS SÃO QUESTÕES que muitos querem ver respondidas, mas que poucos conseguem responder por eles mesmos; afinal, não seria fantástico se todos soubéssemos qual é o sentido da vida, ou para onde vamos após a morte? (E que, uma vez sabendo, todos pudéssemos estar de acordo?).
Acontece que em outros tempos as pessoas olhavam para os seus líderes como fontes de sabedoria. Era uma expectativa do povo que a sua autoridade máxima possuísse discernimento, aquela capacidade de entender objetivamente a realidade em que viviam, e a sabedoria para agir corretamente perante essa realidade. A história reconhece vários líderes como sábios, porém dois se destacam como verdadeiros “reis-filósofos” no seu amor pela sabedoria e na sua habilidade para governar: Salomão, rei de Israel, e Marco Aurélio, imperador romano.
Salomão é para muitos o homem mais sábio que alguma vez existiu. Os seus provérbios e cânticos, assim como os relatos do seu reinado nos livros de Reis e Crónicas, atestam à sagacidade, riqueza, influência e poder do sucessor e filho de David. Salomão gozou de um reinado pacífico, durante o qual Israel atingiu o pináculo da sua prosperidade. Ele ergueu o templo que o seu pai David planeara, forjou boas relações com outros líderes do seu tempo através do comércio e da diplomacia (como são exemplos o rei Hirão I de Tiro e a rainha de Sabá) e desfrutou de uma vida cheia de prazeres – isto é, ele mais as suas setecentas esposas e trezentas concubinas.
Porém um novo lado de Salomão é revelado no que eu considero ser a sua obra-prima, ainda que seja muito provável que ele não tenha sido o seu autor. (Ver abaixo, “Salomão e Eclesiastes”). Salomão, o Qohelet ou Eclesiastes, “aquele que ajunta a assembleia,” confessa a sua angústia sobre o sentido da vida ao perceber que todos os seus grandes feitos e as suas palavras eruditas não terão qualquer significado para ele após a sua morte. O texto relata essa angústia e pesar na primeira pessoa, como se estivéssemos frente-a-frente com um dos maiores reis da Antiguidade, um rei que não aguentava mais manter os seus pensamentos fechados no seu coração e que decidiu partilhar connosco a forma como ele encarava a vida, a sua brevidade e insignificância.
O Eclesiastes (também chamado de “Sábio”, “Mestre” e “Pregador” em diferentes traduções) afirma que as coisas a que o homem dá valor – como os bens materiais, o trabalho, e a própria sabedoria – são efémeras e sem sentido; “tudo é vaidade,” como o autor escreve. Ele reflete também na injustiça sempre presente no mundo, nas bênçãos que Deus dá aos homens sem que eles possam ficar satisfeitos, e na morte que é o fim de todas as coisas e que nos torna todos iguais, ou seja, em pó. Para o Eclesiastes, a vida terrena é uma verdadeira aflição, cheia de dor, sofrimento e injustiça, chegando mesmo a constatar que os mais felizes são aqueles que ainda não nasceram e não experimentaram o tédio e a tortura que é a vida. Correr atrás do vento, sofrer na pele as injustiças e os males deste mundo, trabalhar para que outros gozem os frutos do nosso esforço – tudo isto para acabar em pó, sete palmos debaixo da terra, com o nosso nome e os nossos feitos esquecidos no tempo. Tudo é vaidade, é ilusão, é efémero, e desprovido de sentido ou valor; pois a nossa vida é curta, e o nosso fim é inevitável.
No meio de toda esta melancolia, o Eclesiastes encontra esperança no temor a Deus, na humildade, e no desfrutar do presente. Ele crê que Deus julgará todos os mortos pelas suas ações em vida e conclui que nos devemos alegrar pelas coisas boas que temos, pois elas são dádivas de Deus e nós não sabemos até quando poderemos usufruir delas.
Mil anos depois de Salomão (que supostamente reinou no séc. X a.C.), surge um novo rei-filósofo na forma de Marco Aurélio, o último dos “cinco bons imperadores”, como Maquiavel os apelidou, que governaram o império romano. Contudo, Marco Aurélio distingue-se dos seus antecessores pela sua dedicação à filosofia; a compilação dos seus escritos, ou Meditações, é considerada uma das maiores obras de filosofia greco-romana.
Tal louvor não é para menos. As Meditações do imperador romano oferecem uma perspectiva detalhada e singular do estoicismo (escola de filosofia helenística à qual Marco Aurélio pertencia) visto que Marco Aurélio, tal como Salomão, não era apenas um ávido pensador: ele era o líder supremo de Roma, visto como um deus pelo seu povo. No entanto, Marco Aurélio tinha um interesse pouco comum nas tais questões que nos deixam abananados, de tal maneira que mesmo estando em campanha militar ele escrevia sobre a sua perspetiva na vida e no mundo em que vivia.
Como seria de esperar, a sabedoria de Marco Aurélio não se enquadra a cem por cento com a do Eclesiastes. Isto acontece sobretudo pela divergência que resulta do monoteísmo judaico com o politeísmo romano e a vertente panteísta do estoicismo. Marco Aurélio acreditava na união de todas as coisas e de todos os seres mortais com o universo; acreditava também no valor da razão e da virtude, essenciais para uma vida em conformidade com o que é natural, em detrimento das emoções e dos prazeres carnais, que os estoicos viam como destrutivos.
No entanto, ambos os reis-filósofos concordam que a vida é passageira, um ponto na infinidade do tempo, e que a morte é um fim inescapável, do qual não devemos ter receio se levarmos uma vida da qual não nos arrependemos. Os dois também concordam que a sabedoria é benéfica a todo o homem e que a sua busca é um modo de vida mais do que um simples capricho. Outros pontos de encontro são a exortação que ambos fazem para que a vida seja vivida no presente, que experimentemos aquilo que já foi feito pelos nossos antepassados por nós próprios (“nada há de novo debaixo do sol!”), e que obedeçamos à lei, pois ela é aplicada para nosso bem.
Creio que não há nada como ler os escritos destes dois líderes para perceber por que é que, milhares de anos após as suas mortes, eles são ainda hoje venerados pela sua sabedoria.
Os livros de Eclesiastes e Meditações são os pensamentos mais íntimos de dois homens que, apesar dos seus cargos majestosos, mantiveram um julgamento profundo, humilde e realista do mundo e de eles mesmos. Cabe-nos a nós agora seguir nas suas pisadas, buscando sabedoria que ilumina as nossas mentes, limpa os nossos corações, e muda o que nos rodeia através das nossas palavras e ações.